terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Crítica: Adeus, primeiro amor

Angústia, teu nome é amor

"Adeus, primeiro amor" (França e Alemanha, 2011), dirigido por Mia Hansen-Love, trabalha com o amor que a personagem de Lola Créton nutre e se desenvolve em obsessão para com o personagem de Sebastian Urzendowski. Os sentimentos de Camille/Créton que a ligam a Sullivan/Urzendowski são tão profundos que a moça se torna infeliz e desinteressada na sua rotina quando ocorre a ruptura do casal. O foco da diretora é a paixão platônica que se transformou o relacionamento dos jovens. Sua câmera visa mostrar a dimensão da angústia do amor unilateral de Camille.

O roteiro da própria Mia Hansen-Love é bem didático e simples. Os planos-sequência da diretora são convencionais e o filme procura um pouco de ousadia apenas quando mostra a nudez de Lola Créton em algumas cenas. O diferencial aqui é o tratamento singelo e delicado com o qual o tema é abordado. Um amor verdadeiro, embora recheado de ciúmes e sentimento de posse, não se encontra em todo lugar e esta nuance fílmica é enfatizada pelas lentes da cineasta.

"Adeus, primeiro amor" aborda a dependência emocional de Camille para com Sullivan. A composição cênica de Lola Créton da personagem é, visivelmente, interessante e facilita a visão perfeitamente plausível que a cineasta possui em relação aos sentimentos que o primeiro amor desperta nas moças. E essa abordagem realista e recheada de compaixão do universo de Camille recebeu de Hansen-Love um aprofundamento psicológico adequado. 

A narrativa definida do longa-metragem vai delineando paulatinamente a personalidade da protagonista central que se permite trair o novo companheiro em nome do amor jamais esquecido e mesmo, metaforicamente, como um rio com água corrente e a vida seguindo seu curso, Camille parece não conseguir esquecer a sua primeira paixão. 

Embora frio, "Adeus, primeiro amor" é um retrato bonito e melancólico de um amor não correspondido. 

Márcio Malheiros França

segunda-feira, 30 de março de 2020

Crítica: O céu sobre os ombros



O peso da existência

O céu sobre os ombros (Brasil, 2010), roteirizado (em parceria com Manuela Dias) e dirigido por Sérgio Borges, trabalha com a coragem para enfrentar, aceitar ou tentar modificar, mas sempre suavizando a realidade da existência humana, ao narrar o cotidiano de três personagens moradores da periferia de Belo Horizonte.

O filme une o conceito de documentário com a forma convencional da ficção e aborda com desenvoltura as atividades e ideias que o trio apresenta na tela. E evidencia que todo ser humano possui habilidades específicas que o diferencia dos demais.

Vencedor do Festival de cinema de Brasília de 2010, O céu sobre os ombros procura os ângulos de visão de seus retratados em relação aos seus respectivos universos específicos, sem esquecer as questões universais que cada um apresenta em seu repertório construído ao longo de seus anos de vida (os protagonistas beiram os trinta anos).

O filme apresenta a solidão do trio como objeto fílmico que os entrelaça, mas Sérgio Borges aspira mesmo apresentar o quanto cada personagem sente o céu sobre os seus próprios ombros para carregar.

A película apresenta o africano desiludido e candidato a escritor, Lwei; o travesti intelectual, Everlyn, e o religioso e torcedor de carteirinha do Atlético/MG, Murari. Três pessoas com seus conflitos, dilemas, gostos e opções de lazer (e prazer) diferentes.

O diretor soube explorar ao máximo o psicológico de cada um e concebeu uma obra existencialista e humana. O céu sobre os ombros possui uma narrativa definida e abrangente sobre as particularidades de seus retratados.

O céu sobre os ombros é interessante como cinema e contém um vasto material de cunho filosófico-sociológico-psicológico-antropológico que suscita um debate após o término de sua projeção. A produção, lapidada na estética e crua no conteúdo, se permite exibir uma cena de sexo real entre Everlyn e um cliente.

A obra esmiúça o peso da condição e existência humana sob uma ótica realista e traça um painel otimista sobre as diversas formas de condução da vida.

Márcio Malheiros França

sexta-feira, 20 de março de 2020

Crítica: Contágio

Alarmismo e desesperança



Contágio (EUA, 2011), dirigido por Steven Soderbergh (Erin Brochovich - Uma mulher de talento), trabalha com a frustração da desesperança que a população mundial passa a sofrer após a rápida disseminação de um novo tipo de vírus contagioso e letal que os 7 bilhões de habitantes do planeta lutam para não contrair.

De tonalidade alarmista e séria, o filme passa credibilidade com a veracidade imposta pela direção segura de Soderbergh, com seu estilo narrativo inconfundível, à premissa que pode, de fato, acontecer.

O filme possui uma estrutura narrativa frenética e intensa ao traçar um painel futurista sobre uma epidemia mundial. Soderbergh concebeu um filmaço, principalmente, pelo clima de tensão de cada plano-sequência, valorizado pelos acordes nervosos da música-tema que balançam a sensorialidade do espectador.

A estética de Contágio é sofisticada sendo esta uma característica do diretor se valer com apuro técnico os recursos visuais (conforme percebido, por exemplo, nas duas películas arrojadas e biográficas do cineasta Che e sua continuação Che 2 - A guerrilha).

Salta aos olhos a bonita fotografia do longa-metragem em tom mostarda presente em quase toda a projeção.

O tom apocalíptico pulsante do longa-metragem ajuda o cineasta a realizar uma obra que parte de um mote atual contido no roteiro de Scott Z. Burns, e que, em outras mãos menos talentosas receberia um tratamento recheado de clichês e lugares-comuns em razão de sua sua idiossincrasia não ser muito estimulante.

Contágio possui uma nuance fílmica ímpar e realista que o diferencia da maioria de seus similares pós-apocalípticos em função da presença da verossimilhança de sua narrativa que exprime algo plausível e alarmista que bate na tela e esbarra de modo cronológico no tempo real.

Soderbergh utiliza cada tomada de câmera de forma virtuosa e original e com domínio fílmico elabora uma obra tensa, plausível e interessante e reverbera uma catástrofe sanitária com algum didatismo em seu mote que remete à paciente zero/Gwyneth Paltrow ao caos e seu colapso humanitário cuja origem se revela no desfecho.

As interpretações do elenco estelar da produção são um capítulo à parte. Enquanto Matt Damon apresenta sua melhor interpretação desde O desinformante!, de 2009 (do mesmo cineasta), Jude Law (Estrada para perdição) está caricato como um blogueiro oportunista e inescrupuloso. Gwyneth Paltrow (Amantes) mostra um amadurecimento tanto físico, quanto cênico.

A incontestável Kate Winslet (O leitor) mostra vigor em sua interpretação; Marion Cotillard (Meia-noite em Paris) e Laurence Fishburne (Matrix) completam o elenco da produção.

O desespero incontido da população é mostrado com discrição sábia exemplificado em saques a supermercados e violência em geral sendo preciso a intervenção das forças armadas.

O caos montado por Soderbergh, onde a dignidade e valores morais de cada um vem à tona, é um fator de atratibilidade da trama. Esse cenário acentua o nível exemplar de dramaticidade do filme.

O filme é estimulante mesmo com a indigesta desesperança que assombra seus personagens principais e secundários, sacudidos por perdas e em estado psicológico abalado com a possibilidade real de contágio.

O diretor realizou um filme sóbrio que escapa incólume de pequenas burocracias - presente em algumas cenas - que remete ao texto proferido pelas autoridades responsáveis pela cura da doença ao exprimir com êxito uma montagem acelerada.

Contágio é indispensável como produto cinematográfico e como um quadro desolador, cinzento e com ares premonitórios sobre as consequências de uma pandemia global devastadora e carregada de nuvens que sombreiam a existência terrestre, provocada por um novo tipo de vírus, que esbofeteiam o homo sapiens moderno.

Márcio Malheiros França