terça-feira, 16 de julho de 2019

Crítica: Mulher solteira procura

Morando com o perigo




Mulher solteira procura (EUA, 1992), dirigido por Barbet Schroeder (O reverso da fortuna), trabalha com o ônus da necessidade financeira em custear as despesas de um apartamento que promove o encontro de suas jovens protagonistas principais Allison 'Allie' Jones/Bridget Fonda (Dr. Hollywood - Uma receita de amor), a locatária, com Hedra 'Hedy' Carlson/Jennifer Jason Leigh (Cortina de fogo), a sublocatária.

Barbet Schroeder se vale de um texto escrito à seis mãos para tecer uma narrativa que paulatinamente vai expondo a verve psicótica de Hedy em uma embalagem de crescente atmosfera sombria, sufocante claustrofobia e suspense psicológico. A produção é um eficaz exercício de terror implícito para no terço final escancarar sua verdadeira vocação de terror explícito e violência em estado bruto provocada pela sua personagem-psiquiátrica.

A premissa de Mulher solteira procura evidencia o carisma e a personalidade forte de Hedy em contraponto à fragilidade emocional presente na psique de Allie exponenciadas na procura do vizinho amigo e homossexual Graham Knox/Peter Friedman para passar a noite depois da desilusão com seu romance e no sentimento de culpa depois de sofrer assédio no ambiente de trabalho.

A personagem de Jennifer Jason Leigh encontra facilidade em conquistar a simpatia de sua interlocutora, desde o início, devido ao momento de vulnerabilidade desta às voltas com a indecisão de seu relacionamento amoroso e outros fatores, inclusive a sorte, que ajudam a fomentar a aliança supostamente inocente das duas.

Assim como as aparências enganam e ultrajam quando a verdade salta aos olhos, havia em Hedy uma metodologia sorrateira em suas ações e um maquiavélico modus operandi em suas intenções. A personagem de Jennifer Jason Leigh vislumbra em Allie a senhoria perfeita para por em prática seu projeto psicótico de encantamento e sedução devidamente planejado e orquestrado de forma discreta.

Reincidente em seu passado obscuro e irmã gêmea de outrem, a personagem é dominada pelo transtorno obsessivo-compulsivo e pela esquizofrenia em sua psique espatifada e deformada e procura uma companhia feminina perfeita para a argamassa de um ideal de união que tinha com sua parenta jamais esquecida em sua personalidade distorcida.

Arrojada em seu comportamento camuflado, Hedy muda a aparência física e compra roupas iguais para assumir a identidade de Allie com o intuito inicial de reviver seu conflito identitário em seu passado mal resolvido. Acontece que a empreitada foge de seu controle e a vilã aproveita seu anonimato (e seu nome adulterado) para deixar pistas falsas que apontariam a mocinha como provável culpada de seus nebulosos devaneios psicóticos.

Mulher solteira procura exibe cenas de nudez das protagonistas e insinuações carnais da sensual Hedy tanto para com Allie como para com seu noivo Sam Rawson/Steven Weber (Hamburger Hill)  que explicitam a insatisfação sexual e o vazio existencial da personagem. Momentos que afirmam a busca da mesma em criar elos e vínculos com seus interlocutores difíceis de serem desfeitos.

Fotogramas libidinosos que no seu ápice mostram masturbação feminina e realçam a tendência da época depois do estrondoso sucesso do subestimado 9 e 1/2 semanas de amor, de 1986, de Adrian Lyne e de várias outras produções que usaram o artifício como o interessante Orquídea selvagem, de 1989, de Zalman King.

Allie ocupada em suas funções como estilista e com seu psicológico abalado com o término de seu noivado e como sua posterior antagonista carente de afeto não vislumbra os sentimentos rasteiros e manipuladores desta em tempo hábil de evitar as ações desenfreadas e insanas de Hedy.

Mesmo alcançando êxito em suas pretensões cênicas ao realçar a tensão e algum mistério em sua narrativa, com decupagem ágil e boa direção de Barbet Schroeder o longa-metragem exprime a ausência do fator surpresa. A obra possui muitos elementos fílmicos que se atropelam e alguma inverossimilhança em seu desfecho. Ainda assim, Mulher solteira procura é satisfatório tratado sobre a solidão.

A arquitetura do prédio-locação da maioria de suas cenas surge como elemento que destaca a atmosfera cinzenta da narrativa. Situado em Nova York, o decadente e imenso local exala aspectos de periculosidade como o elevador defeituoso, além de garagem e lavanderia desertas. Localização ideal para Hedy executar seu plano doentio sem despertar suspeitas.

O longa-metragem mesmo para o ano de produção (1992) não chega a ser completamente original por ser herdeiro do mote e da concepção fílmica do memorável Morando com o perigo, de 1990 com o escroque inquilino interpretado por Michael Keaton aterrorizando seus senhorios Melanie Griffith e Matthew Modine.

O gênero suspense psicológico estava em alta na época com o lançamento do decepcionante Dormindo com o inimigo, também de 1991 com a oprimida Julia Roberts e seu agressivo e maníaco-compulsivo marido interpretado por Patrick Bergin, como também do desconcertante Instinto selvagem, de 1992 com Sharon Stone.

Mulher solteira procura narra a psicopatia de uma personagem de psique pérfida, intrusiva e possessiva na afeição e no cotidiano de outrem devidamente escolhida no seu imaginário torpe. Intuitiva e perspicaz, a personagem consegue por algum momento seu objetivo e guiada pelo ciúme doentio e carência afetiva extremados procura eliminar aqueles que tenderiam a atrapalhar seu projeto torto de convivência humana.

Mulher solteira procura é um painel amargo sobre o colapso relacional do homo sapiens em acreditar em intenções e razões do outro. Um retrato plausível de alguém que vislumbra não haver outra saída para preservar sua existência a não ser se fortalecer psicologicamente e usar das mesmas táticas persuasivas e da mesma letalidade de sua antagonista.

Márcio Malheiros França

terça-feira, 9 de julho de 2019

Crítica: A estranha perfeita

Personalidades pérfidas e amorais





A estranha perfeita (EUA, 2007), dirigido por James Foley (Quem é essa garota?), trabalha com dissimulações e engenharia mental de um personagem em criar condições para executar, forjar seu álibi e encontrar o bode expiatório ideal para um assassinato cujo plano teórico concebido e seu mecanismo prático beiram o sublime.

O mistério sobre a identidade do(a) criminoso(a) vai sendo costurado de forma exemplar por James Foley que coloca a jornalista investigativa Rowena Price/Halle Berry (Coisas que perdemos pelo caminho) a protagonista principal e seu principal coadjuvante, Miles Haley/Giovanni Ribisi (Cold Mountain), em claro procedimento investigatório cujo alvo é o empresário Harrison Hill/Bruce Willis (Duro de matar).

A estranha perfeita evidencia seu carisma em criar uma atmosfera que retrata um interesse crescente por seu desfecho, pela identidade do culpado. Apoiado em ótimo roteiro de Todd Komarnick (Sully - O herói do rio Hudson) o diretor realizou uma pequena obra-prima sobre a falta de escrúpulos e a perversidade humana em estado bruto quando o sentimento de vingança e a consequente necessidade de salvar a própria pele das garras da lei se consolidam em suas personalidades maquiavélicas.

Com inspiração nos clássicos suspenses de outrora e no cinema noir, A estranha perfeita é uma máquina de personalidades psicológicas típicas de um sistema perverso de sentimentos no qual ninguém é pobre pecador expiando seus pecados. O sentimento indigesto e impiedoso da traição fica notório em cada gesto e ação de seus protagonistas e coadjuvantes. Universo de lei da selva em que mesmo amizades aparentemente sólidas e com a mesma ideologia são desfeitas em prol da sobrevivência.

Arrojado, intrigante, sólido A estranha perfeita aborda de forma original a engrenagem do mistério que envolve um crime sem resvalar no maniqueísmo habitual e escancara a singularidade de protagonistas que possuem algo a esconder e sempre com algo a perder que bate na tela revelando a essência sórdida de seus integrantes e suas plausíveis subsequentes motivações para as insanidades perigosas que se chocam com os interesses de outrem parecido em sua psique inescrupulosa e deformada.

James Foley filma ângulos e enquadramentos ímpares - evidenciado em seu prefácio e clímax - e alcança êxito ao lidar com as idiossincrasias da trama recheada de personagens tanto inteligentes quanto pérfidos e sem remorsos em suas ações. O mote de A estranha perfeita coloca os atores em confronto psicológico e por vezes físico no qual o calcanhar de Aquiles de um é investigado e pisoteado por outro.

Desde o pervertido sexual passando pelo assediador de mulheres compulsivo até a ninfomaníaca cujo assassinato move a trama revelam as profundezas lamacentas das psiques de seus personagens centrais A estranha perfeita vai sendo costurado de forma inequívoca e com intenso domínio fílmico em sua narrativa definida e oferece ao espectador uma brilhante interpretação de Halle Berry sua protagonista principal.

James Foley possui boa condução de seus atores e filma as reviravoltas da trama com maestria, de forma linear e sem atropelos e exibe sua técnica com trechos de frases-chave no clímax. Ainda que o desfecho explicite alguma celeridade no formato sua solução final é verossímil e satisfatória.

Como um emocionante e clássico jogo de tabuleiro, o longa-metragem narra uma intrincada trama de suspense psicológico e dedução recheada de pistas falsas subversivas e vislumbra o crime perfeito para ajustar as peças de sua engrenagem no desfecho.

A estranha perfeita usa fragmentos de flashbacks como recurso fílmico para adensar sua verve detetivesca e no desenlace como demonstração da motivação do ato criminoso e mostra o ônus da subestimação da capacidade de dedução instintiva e intuitiva do seu interlocutor.

Estiloso, imprevisível, atraente A estranha perfeita aborda manipulações rasteiras em psiques distorcidas na infância e gritante indução ao erro judiciário de seu elo mais frágil e visado. Um painel realista e amargo sobre a amoralidade e a falta de ética presentes no psicológico de seus elementos.

A estranha perfeita funciona como síntese do colapso do ideal civilizatório do homo sapiens e provoca o embate de artimanhas entre semelhantes.

Márcio Malheiros França

terça-feira, 2 de julho de 2019

Crítica: Casal improvável

Acasos do Cupido





Casal improvável (EUA, 2019), dirigido por Jonathan Levine (Os caça-noivas), trabalha com as antagônicas diferenças de cunho social, comportamental e física que tenderiam a distanciar os protagonistas principais Freddy Flarsky/Seth Rogen (Minha mãe é uma viagem) e Charlotte Field/Charlize Theron (Atômica). Em efeito reverso, a obra tece e solidifica sua aproximação e consolidação.

Comédia de costumes, Casal improvável possui o estilo típico de algumas produções estreladas por Seth Rogen com elementos como o humor tosco mas inteligente em seus diálogos primorosos e por vezes ferinos que revelam certa verborragia, alguma escatologia e duração esticada. Bem-alinhavado em suas idiossincrasias fílmicas, o longa-metragem evidencia e se beneficia de sua real vocação de ser um besteirol costurado com tutano.

Seth Rogen estrelou o filme que inaugurou o filão, Ligeiramente grávidos, de 2007, e se vislumbra em Casal improvável a mesma verve narrativa e a naturalização e afirmação de um subgênero o da comédia romântica desglamourizada, que aborda situações corriqueiras com seus personagens com conflitos reais em situações facilmente identificáveis no dia a dia dos espectadores. Não há aqui a tentativa de desconectar do cotidiano tanto personagens como suas respectivas emoções e psiques.

As cenas de sexo implícito entre Freddy Flarsky e Charlotte Field reafirmam a intenção de Jonathan Levine e de seus dois principais intérpretes e produtores do processo fílmico de tornar seus personagens factíveis com a humanidade e seus dilemas morais, éticos, sexuais. Recurso cênico arrojado e explicitado, por exemplo, nas fantasias eróticas da coprotagonista que embaralham o raciocínio lógico de seu parceiro.

O longa-metragem procura a desconstrução de um imaginário popular onde mesmo uma mulher de status profissional elevado - Charlotte Field é secretária de estado do governo norte-americano - sente e fantasia os mesmos desejos libidinosos que uma cidadã comum.

Em momento antológico onde depois de sofrer um atentado, Charlotte Field busca, na companhia de Freddy Flarsky, a fuga de sua rotina e de seu psicológico rígido e compromissado com a carreira em uma noitada na boate e depois estendida para seu quarto regada à álcool e entorpecentes. Prudentemente disfarçados, assim como seus seguranças.

Como em toda situação onde a inexperiência e o ineditismo do fato prevalece, a situação transborda para o inevitável e excessivo uso de seus elementos dispersivos da racionalidade e respinga no senso de responsabilidade da personagem quando esta precisa negociar, como osso do ofício, com um sequestrador estrangeiro ainda inebriada. Cena-sequência hilariante e impagável que funciona como síntese da obra.

Cômico e romântico na medida certa, Casal improvável aborda, em dado momento, o distanciamento por motivos profissionais da dupla que gera sofrimento e angústia em ambos e evidencia o que estava invisível para a protagonista e seu par: a saudade da companhia do outro que desperta em ambos a pulsão de vida e o amor que a ausência provoca e acentua.

Criativo, ímpar, diferenciado Casal improvável se beneficia de certa originalidade e interesse crescente e trabalha com o sonho e ideologia que advém da infância no planejamento almejado da trajetória de Charlotte Field e que mesmo sob pressão de chantagens e demais adversidades resiste devido e sobretudo à presença de seu par romântico.

A personagem de Seth Rogen abala a estrutura psicológica de Charlotte Field com tamanha intensidade com sua personalidade oposta mas semelhante na índole que exprime e reflete o conceito dos dois pólos dicotômicos que se completam e se fortalecem.

Seth Rogen e Charlize Theron atuam de forma espontânea e souberam captar o ritmo do longa-metragem e o peso de seus respectivos papéis. Freddy Flarsky rude, bronco, sincero se adaptou bem ao refinamento, polidez, idealismo de sua interlocutora e vice-versa.

O casal apaixonado encontra em sua união a razão de sua existência. O acaso do Cupido contraria todos prognósticos contrários ao seu enlace e toda improbabilidade da empreitada não ser exitosa.

Márcio Malheiros França