quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Crítica: A luz no fim do mundo

Psique atormentada e com forte instinto de proteção



A luz no fim do mundo (EUA, 2019), produzido, escrito e dirigido por Casey Affleck (Horas decisivas), versa sobre a delicada e obstinada relação entre o pai protetor do personagem do diretor e sua filha adolescente Reg interpretada por Anna Pniowsky (estreante nas telonas); sobre a jornada perigosa posterior a uma pandemia mundial que praticamente extermina o sexo feminino.

Em flashbacks nos quais a mãe vivida por Elisabeth Moss (Rainhas do crime) se faz presente de forma discreta são exibidos os momentos da família completa e do que se derivaria a narrativa.

Os econômicos fotogramas que a personagem de Elisabeth Moss interpreta são fundamentais para a interpretação da psique do pai de Affleck. Um personagem inteiramente voltado para o seio familiar espatifado, sua fragilidade diante do inevitável e o espelho de sua herdeira do qual se reflete e se nutre para seguir em frente.

Essas cenas exprimem ainda a coragem da personagem juvenil em boa parte advinda da psicologicamente forte e resignada mãe.

Em determinado momento a câmera de Casey flagra Reg manuseando jornais antigos da época da peste genocida de mulheres e mesmo em alguns diálogos A luz no fim do mundo revela com maestria a turbulenta época da qual se origina a trama e seu desenvolvimento.

Casey concebe um futuro com tonalidades apocalípticas aceitáveis, ainda que esbarre em pequena inverossimilhança, no qual uma peste devastadora e seletiva de gênero provoca o desequilíbrio harmônico do Homo sapiens e revela a importância da mulher no mundo ao sinalizar os humores masculinos com a sua ausência.

Há algo de trágico no mote e na narrativa do longa-metragem que se assemelha ao igualmente triste e desesperador Manchester à beira-mar também interpretado por Casey Affleck (oscarizado por este papel) que qualifica a obra atual como seu similar de 2019.

A luz no fim do mundo possui em sua estrutura fílmica o apelo ao emocional de seus protagonistas em especial do pai que se traduz no sempre apreciável aprofundamento de suas psiques que demostram interessante resistência combativa e reativa ao constante e dilemático perigo que o filme exala em seus cinzentos e nublados fotogramas.

Há uma distorção do título original Light of my life (Luz da minha vida) que seria mais apropriado no caso em questão, vez que A luz no fim do mundo exibe em seu recorte temporal a pequena sendo criada e protegida à exaustão pelo personagem durante aproximadamente pouco mais de uma década e esse zelo é a meta de vida do personagem de Casey Afleck e a razão de sua existência.

O personagem somente encontra momentos de satisfação ao dialogar e mesmo quase monologar sobre a maturidade e alguns conhecimentos próprios de vida que procura passar à criança.

Casey Affleck evita os closes em demasia em seu personagem. Ainda assim, e de forma acertada, há alguns momentos que o recurso se mostra necessário na paulatina e linear narrativa onde o personagem é fotografado, por suas próprias lentes, que expressam sua angústia e dilema com a conflituosa situação.

Depois das brilhantes atuações de Leonardo DiCaprio e Brad Pitt no deslumbrante Era uma vez...em Hollywood, de Quentin Tarantino e Joaquin Phoenix no desconcertante Coringa, de Todd Phillips, Casey Afleck surge, neste filme, como potencial indicado aos prêmios de melhor ator nas premiações tradicionais.

A luz no fim do mundo é uma ficção científica, futurista e alarmista de conotação que evidencia exponencial plausibilidade com uma roupagem de contornos dramáticos e crescente tensão que exacerba e aprofunda os sentimentos de união, instinto de sobrevivência e vigorosa resiliência de seus protagonistas.

O longa-metragem é um retrato triste, humano e, em razão disso, bonito de uma existência masculina e paterna voltada para a preservação da integridade e ingenuidade da filha durante toda sua infância e entrada para a adolescência.

Com sua trama de idiossincrasia fílmica que reverbera o amor sólido que realça o elo afetivo da dupla e constante perseguição e fuga, o longa-metragem se assemelha ao exemplar Estrada para Perdição, de 2002, dirigido por Sam Mendes, no qual o gângster de Tom Hanks luta à todo custo e se expõe ao risco para salvar seu filho dos seus pares.

O tom de A luz no fim do mundo se diferencia daquele ao exalar maior minimalismo e densidade. Lacrimogêneo e tocante a obra foca se revela mais poética e sublime ao reverberar um intenso e relevante registro sobre o peso da ausência que um dos gêneros sexuais se faz notado na humanidade.

Os momentos de relativa calmaria entre Reg e o pai fazem lembrar, ainda, o clima claustrofóbico dos dois primeiros atos do intrigante O quarto de Jack, de 2015, com Brie Larson e direção de Lenny Abrahamson.

Contudo, A luz no fim do mundo revela maior regularidade fílmica que este onde seu terço final exprime um desfecho burocrático e insatisfatório.

O clímax evidencia um cansaço físico e sobretudo emocional do obstinado elemento expresso no choro copioso que revela sofrimento de quem peregrina de lugar para lugar em busca de discrição e disfarce na identidade sexual da adolescente. Uma trajetória de reluzente abnegação por amor e dedicação ao seu objetivo.

Íntegro em sua psique que transparece uma exponencial lucidez e fiel a essa mesma virtude em suas ações puramente instintivas ao sempre presente perigo que ronda a dupla, o pai dedica boa parte de sua existência única e exclusivamente voltada aos cuidados com a menina.

A luz no fim do mundo é uma pequena obra-prima sobre a indigesta solidão e o isolamento social forçado e necessário de seus protagonistas.

O longa-metragem é um retrato angustiante de uma jornada edificante por excesso de turbulências na trajetória de uma psique atormentada em confronto com a nova sociedade monossexual em vigor e um painel amargo, sóbrio e profundo de uma potente devoção afetuosa que exprime uma trincheira ao que seria um destino catastrófico.

Márcio Malheiros França

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