domingo, 28 de fevereiro de 2021

Crítica: Os novos mutantes

Psiques acorrentadas aos seus traumas e anomalias paranormais



Os novos mutantes (EUA, 2020), dirigido por Josh Boone (A culpa é das estrelas), trabalha com o surrealismo e o fantástico ao abordar a prerrogativa de cinco X-men adolescentes em fase de aprendizagem e domínio de seus poderes paranormais e aborda seus cotidianos em uma clínica supostamente de aprimoramento de suas habilidades extra sensoriais.

Há em Os novos mutantes uma economia de fotogramas para uma versão de super-heróis aliada ao gênero ação que destoa dos demais.

Sua narrativa bebe na fonte de diversas produções clássicas: como o drama juvenil e existencial de John Hughes, O clube dos cinco, de 1995; o psicodelismo sensorial aliado ao surrealismo e escapismo da realidade de Sucker Punch - mundo surreal, de Zack Snyder, produção de 2011 e ao frescor de obras de terror psicológico onde o trauma e o medo que deles se advêm se materializam e surgem em formas concretas como a trilogia Às vezes eles voltam, com o original dirigido por Tom McLoughlin em1991.

A motivação real do confinamento/aprisionamento da trupe se revela um mistério em que a personagem Danielle Moonstar de Blu Hunt (Outra vida) surge como o elo e, mesmo, como objeto catalítico de sua revelação algo indesejada mas redentora para a trupe não sem algum sofrimento em suas psiques em formação.

A trama que abre e fecha com narração em off de sua personagem principal possui nuances definidas de suspense psicológico na qual cada elemento precisará lidar com seus fantasmas pessoais para finalmente almejar sua liberdade física do hospital

Bem como - e mais importante - a desconstrução de suas limitações sociais decorrentes de eventos traumáticos oriundos de seus sentimentos de culpa presentes em suas essências psicológicas.

Os novos mutantes possui personagens que passam ao largo da doença mental - ainda que apresentem psiques atormentadas demais para suas impúberes existências em razão de suas anomalias - mesmo em ambiente que exala essa impressão com suas terapias em grupo e o constante monitoramento de seus integrantes.

A personagem Illyana Rasputin de Anya Taylor-Joy (Vidro) se revela a menos afetada e mais segura do quinteto destoando dos demais com sua personalidade forte que exprime ausência de emoções baratas e carência do essencial sentimento de remorso em suas ações.

Danielle Moonstar da promissora Blu Hunt abre a trama do longa-metragem em uma sequência cênica chave com sua característica paranormal que se revela seu temor e sua força quando controlado que permeará toda a narrativa da obra.

Sua presença afeta positivamente Rahne Sinclair de Maisie Williams (Cyberbully) que o elo entre as duas se encaminha para uma singela atração física homo afetiva que supera a beleza da ingênua amizade que une ambas personagens.

Sua chegada na clínica provocará o início da catarse conflituosa e redentora para os demais integrantes do quinteto de heróis renegados do convívio social e familiar em evidente processo de gestação, solidificação e consolidação como tal e o subsequente conformismo como missão existencial.

Danielle Moonstar surge como o elemento essencial da aceitação da paranormalidade dos colegas e a subsequente superação de seus dilemáticos fantasmas pessoais por meio da fundamental colaboração e união de coletiva com interesses em comum. 

Seu psicodelismo sensorial coloca sobre a mesa a verdadeira intenção da empresa Essex em manter os jovens em confinamento e reverbera a perfídia escondida na suposta médica e monitora dos mesmos, Dr. Reyes, de Alice Braga (Eu sou a lenda). 

Os novos mutantes apresenta a fórmula plausível ainda que batida na qual a psique de seus elementos precisará piorar para se estabilizar e se afirmar.

Ainda que a obra se ressinta da notória originalidade que permeia toda a sua projeção, Os novos mutantes bate na tela com algum brilho em sua idiossincrasia de um universo mágico e fantástico que se assemelha, ainda, à franquia Fantasia, iniciada por Wolfgang Peterson em 1985. Há algum charme no liquidificador de gêneros da produção. 

O escapismo da realidade de alguns protagonistas e os ecos do passado de todos os protagonistas da trama se materializam e tornam a produção semelhante a filmes de terror psicológico gerando uma obra sombria, surrealista, psicológica.

Os personagens apresentam um devastador e corrosivo sentimento de culpa - com exceção de Illyana Rasputin - e sentem o peso cáustico da ausência do convívio social os quais terão que aprender a lidar doravante.

Como Prometheu acorrentado da mitologia grega, os mutantes metafísicos precisam desde cedo aprender a superar seus traumas, erros e medos provenientes de seus poderes sobrenaturais e acalmar o âmago de suas existências como forma de redenção e sobrevivência.

Márcio Malheiros França


terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Crítica: Adeus, primeiro amor

Angústia, teu nome é amor

"Adeus, primeiro amor" (França e Alemanha, 2011), dirigido por Mia Hansen-Love, trabalha com o amor que a personagem de Lola Créton nutre e se desenvolve em obsessão para com o personagem de Sebastian Urzendowski. Os sentimentos de Camille/Créton que a ligam a Sullivan/Urzendowski são tão profundos que a moça se torna infeliz e desinteressada na sua rotina quando ocorre a ruptura do casal. O foco da diretora é a paixão platônica que se transformou o relacionamento dos jovens. Sua câmera visa mostrar a dimensão da angústia do amor unilateral de Camille.

O roteiro da própria Mia Hansen-Love é bem didático e simples. Os planos-sequência da diretora são convencionais e o filme procura um pouco de ousadia apenas quando mostra a nudez de Lola Créton em algumas cenas. O diferencial aqui é o tratamento singelo e delicado com o qual o tema é abordado. Um amor verdadeiro, embora recheado de ciúmes e sentimento de posse, não se encontra em todo lugar e esta nuance fílmica é enfatizada pelas lentes da cineasta.

"Adeus, primeiro amor" aborda a dependência emocional de Camille para com Sullivan. A composição cênica de Lola Créton da personagem é, visivelmente, interessante e facilita a visão perfeitamente plausível que a cineasta possui em relação aos sentimentos que o primeiro amor desperta nas moças. E essa abordagem realista e recheada de compaixão do universo de Camille recebeu de Hansen-Love um aprofundamento psicológico adequado. 

A narrativa definida do longa-metragem vai delineando paulatinamente a personalidade da protagonista central que se permite trair o novo companheiro em nome do amor jamais esquecido e mesmo, metaforicamente, como um rio com água corrente e a vida seguindo seu curso, Camille parece não conseguir esquecer a sua primeira paixão. 

Embora frio, "Adeus, primeiro amor" é um retrato bonito e melancólico de um amor não correspondido. 

Márcio Malheiros França

segunda-feira, 30 de março de 2020

Crítica: O céu sobre os ombros



O peso da existência

O céu sobre os ombros (Brasil, 2010), roteirizado (em parceria com Manuela Dias) e dirigido por Sérgio Borges, trabalha com a coragem para enfrentar, aceitar ou tentar modificar, mas sempre suavizando a realidade da existência humana, ao narrar o cotidiano de três personagens moradores da periferia de Belo Horizonte.

O filme une o conceito de documentário com a forma convencional da ficção e aborda com desenvoltura as atividades e ideias que o trio apresenta na tela. E evidencia que todo ser humano possui habilidades específicas que o diferencia dos demais.

Vencedor do Festival de cinema de Brasília de 2010, O céu sobre os ombros procura os ângulos de visão de seus retratados em relação aos seus respectivos universos específicos, sem esquecer as questões universais que cada um apresenta em seu repertório construído ao longo de seus anos de vida (os protagonistas beiram os trinta anos).

O filme apresenta a solidão do trio como objeto fílmico que os entrelaça, mas Sérgio Borges aspira mesmo apresentar o quanto cada personagem sente o céu sobre os seus próprios ombros para carregar.

A película apresenta o africano desiludido e candidato a escritor, Lwei; o travesti intelectual, Everlyn, e o religioso e torcedor de carteirinha do Atlético/MG, Murari. Três pessoas com seus conflitos, dilemas, gostos e opções de lazer (e prazer) diferentes.

O diretor soube explorar ao máximo o psicológico de cada um e concebeu uma obra existencialista e humana. O céu sobre os ombros possui uma narrativa definida e abrangente sobre as particularidades de seus retratados.

O céu sobre os ombros é interessante como cinema e contém um vasto material de cunho filosófico-sociológico-psicológico-antropológico que suscita um debate após o término de sua projeção. A produção, lapidada na estética e crua no conteúdo, se permite exibir uma cena de sexo real entre Everlyn e um cliente.

A obra esmiúça o peso da condição e existência humana sob uma ótica realista e traça um painel otimista sobre as diversas formas de condução da vida.

Márcio Malheiros França

sexta-feira, 20 de março de 2020

Crítica: Contágio

Alarmismo e desesperança



Contágio (EUA, 2011), dirigido por Steven Soderbergh (Erin Brochovich - Uma mulher de talento), trabalha com a frustração da desesperança que a população mundial passa a sofrer após a rápida disseminação de um novo tipo de vírus contagioso e letal que os 7 bilhões de habitantes do planeta lutam para não contrair.

De tonalidade alarmista e séria, o filme passa credibilidade com a veracidade imposta pela direção segura de Soderbergh, com seu estilo narrativo inconfundível, à premissa que pode, de fato, acontecer.

O filme possui uma estrutura narrativa frenética e intensa ao traçar um painel futurista sobre uma epidemia mundial. Soderbergh concebeu um filmaço, principalmente, pelo clima de tensão de cada plano-sequência, valorizado pelos acordes nervosos da música-tema que balançam a sensorialidade do espectador.

A estética de Contágio é sofisticada sendo esta uma característica do diretor se valer com apuro técnico os recursos visuais (conforme percebido, por exemplo, nas duas películas arrojadas e biográficas do cineasta Che e sua continuação Che 2 - A guerrilha).

Salta aos olhos a bonita fotografia do longa-metragem em tom mostarda presente em quase toda a projeção.

O tom apocalíptico pulsante do longa-metragem ajuda o cineasta a realizar uma obra que parte de um mote atual contido no roteiro de Scott Z. Burns, e que, em outras mãos menos talentosas receberia um tratamento recheado de clichês e lugares-comuns em razão de sua sua idiossincrasia não ser muito estimulante.

Contágio possui uma nuance fílmica ímpar e realista que o diferencia da maioria de seus similares pós-apocalípticos em função da presença da verossimilhança de sua narrativa que exprime algo plausível e alarmista que bate na tela e esbarra de modo cronológico no tempo real.

Soderbergh utiliza cada tomada de câmera de forma virtuosa e original e com domínio fílmico elabora uma obra tensa, plausível e interessante e reverbera uma catástrofe sanitária com algum didatismo em seu mote que remete à paciente zero/Gwyneth Paltrow ao caos e seu colapso humanitário cuja origem se revela no desfecho.

As interpretações do elenco estelar da produção são um capítulo à parte. Enquanto Matt Damon apresenta sua melhor interpretação desde O desinformante!, de 2009 (do mesmo cineasta), Jude Law (Estrada para perdição) está caricato como um blogueiro oportunista e inescrupuloso. Gwyneth Paltrow (Amantes) mostra um amadurecimento tanto físico, quanto cênico.

A incontestável Kate Winslet (O leitor) mostra vigor em sua interpretação; Marion Cotillard (Meia-noite em Paris) e Laurence Fishburne (Matrix) completam o elenco da produção.

O desespero incontido da população é mostrado com discrição sábia exemplificado em saques a supermercados e violência em geral sendo preciso a intervenção das forças armadas.

O caos montado por Soderbergh, onde a dignidade e valores morais de cada um vem à tona, é um fator de atratibilidade da trama. Esse cenário acentua o nível exemplar de dramaticidade do filme.

O filme é estimulante mesmo com a indigesta desesperança que assombra seus personagens principais e secundários, sacudidos por perdas e em estado psicológico abalado com a possibilidade real de contágio.

O diretor realizou um filme sóbrio que escapa incólume de pequenas burocracias - presente em algumas cenas - que remete ao texto proferido pelas autoridades responsáveis pela cura da doença ao exprimir com êxito uma montagem acelerada.

Contágio é indispensável como produto cinematográfico e como um quadro desolador, cinzento e com ares premonitórios sobre as consequências de uma pandemia global devastadora e carregada de nuvens que sombreiam a existência terrestre, provocada por um novo tipo de vírus, que esbofeteiam o homo sapiens moderno.

Márcio Malheiros França

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Crítica: A luz no fim do mundo

Psique atormentada e com forte instinto de proteção



A luz no fim do mundo (EUA, 2019), produzido, escrito e dirigido por Casey Affleck (Horas decisivas), versa sobre a delicada e obstinada relação entre o pai protetor do personagem do diretor e sua filha adolescente Reg interpretada por Anna Pniowsky (estreante nas telonas); sobre a jornada perigosa posterior a uma pandemia mundial que praticamente extermina o sexo feminino.

Em flashbacks nos quais a mãe vivida por Elisabeth Moss (Rainhas do crime) se faz presente de forma discreta são exibidos os momentos da família completa e do que se derivaria a narrativa.

Os econômicos fotogramas que a personagem de Elisabeth Moss interpreta são fundamentais para a interpretação da psique do pai de Affleck. Um personagem inteiramente voltado para o seio familiar espatifado, sua fragilidade diante do inevitável e o espelho de sua herdeira do qual se reflete e se nutre para seguir em frente.

Essas cenas exprimem ainda a coragem da personagem juvenil em boa parte advinda da psicologicamente forte e resignada mãe.

Em determinado momento a câmera de Casey flagra Reg manuseando jornais antigos da época da peste genocida de mulheres e mesmo em alguns diálogos A luz no fim do mundo revela com maestria a turbulenta época da qual se origina a trama e seu desenvolvimento.

Casey concebe um futuro com tonalidades apocalípticas aceitáveis, ainda que esbarre em pequena inverossimilhança, no qual uma peste devastadora e seletiva de gênero provoca o desequilíbrio harmônico do Homo sapiens e revela a importância da mulher no mundo ao sinalizar os humores masculinos com a sua ausência.

Há algo de trágico no mote e na narrativa do longa-metragem que se assemelha ao igualmente triste e desesperador Manchester à beira-mar também interpretado por Casey Affleck (oscarizado por este papel) que qualifica a obra atual como seu similar de 2019.

A luz no fim do mundo possui em sua estrutura fílmica o apelo ao emocional de seus protagonistas em especial do pai que se traduz no sempre apreciável aprofundamento de suas psiques que demostram interessante resistência combativa e reativa ao constante e dilemático perigo que o filme exala em seus cinzentos e nublados fotogramas.

Há uma distorção do título original Light of my life (Luz da minha vida) que seria mais apropriado no caso em questão, vez que A luz no fim do mundo exibe em seu recorte temporal a pequena sendo criada e protegida à exaustão pelo personagem durante aproximadamente pouco mais de uma década e esse zelo é a meta de vida do personagem de Casey Afleck e a razão de sua existência.

O personagem somente encontra momentos de satisfação ao dialogar e mesmo quase monologar sobre a maturidade e alguns conhecimentos próprios de vida que procura passar à criança.

Casey Affleck evita os closes em demasia em seu personagem. Ainda assim, e de forma acertada, há alguns momentos que o recurso se mostra necessário na paulatina e linear narrativa onde o personagem é fotografado, por suas próprias lentes, que expressam sua angústia e dilema com a conflituosa situação.

Depois das brilhantes atuações de Leonardo DiCaprio e Brad Pitt no deslumbrante Era uma vez...em Hollywood, de Quentin Tarantino e Joaquin Phoenix no desconcertante Coringa, de Todd Phillips, Casey Afleck surge, neste filme, como potencial indicado aos prêmios de melhor ator nas premiações tradicionais.

A luz no fim do mundo é uma ficção científica, futurista e alarmista de conotação que evidencia exponencial plausibilidade com uma roupagem de contornos dramáticos e crescente tensão que exacerba e aprofunda os sentimentos de união, instinto de sobrevivência e vigorosa resiliência de seus protagonistas.

O longa-metragem é um retrato triste, humano e, em razão disso, bonito de uma existência masculina e paterna voltada para a preservação da integridade e ingenuidade da filha durante toda sua infância e entrada para a adolescência.

Com sua trama de idiossincrasia fílmica que reverbera o amor sólido que realça o elo afetivo da dupla e constante perseguição e fuga, o longa-metragem se assemelha ao exemplar Estrada para Perdição, de 2002, dirigido por Sam Mendes, no qual o gângster de Tom Hanks luta à todo custo e se expõe ao risco para salvar seu filho dos seus pares.

O tom de A luz no fim do mundo se diferencia daquele ao exalar maior minimalismo e densidade. Lacrimogêneo e tocante a obra foca se revela mais poética e sublime ao reverberar um intenso e relevante registro sobre o peso da ausência que um dos gêneros sexuais se faz notado na humanidade.

Os momentos de relativa calmaria entre Reg e o pai fazem lembrar, ainda, o clima claustrofóbico dos dois primeiros atos do intrigante O quarto de Jack, de 2015, com Brie Larson e direção de Lenny Abrahamson.

Contudo, A luz no fim do mundo revela maior regularidade fílmica que este onde seu terço final exprime um desfecho burocrático e insatisfatório.

O clímax evidencia um cansaço físico e sobretudo emocional do obstinado elemento expresso no choro copioso que revela sofrimento de quem peregrina de lugar para lugar em busca de discrição e disfarce na identidade sexual da adolescente. Uma trajetória de reluzente abnegação por amor e dedicação ao seu objetivo.

Íntegro em sua psique que transparece uma exponencial lucidez e fiel a essa mesma virtude em suas ações puramente instintivas ao sempre presente perigo que ronda a dupla, o pai dedica boa parte de sua existência única e exclusivamente voltada aos cuidados com a menina.

A luz no fim do mundo é uma pequena obra-prima sobre a indigesta solidão e o isolamento social forçado e necessário de seus protagonistas.

O longa-metragem é um retrato angustiante de uma jornada edificante por excesso de turbulências na trajetória de uma psique atormentada em confronto com a nova sociedade monossexual em vigor e um painel amargo, sóbrio e profundo de uma potente devoção afetuosa que exprime uma trincheira ao que seria um destino catastrófico.

Márcio Malheiros França

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Crítica: Predadores assassinos

Psique combativa e reativa ao perigo



Predadores assassinos (EUA, 2019), dirigido por Alexandre Aja (Espelhos do medo), versa sobre a dedicação e afeição de uma filha para com seu progenitor interpretada pela anglo-brasileira Kaya Scodelario (trilogia Maze Runner); sobre a exposição aos riscos que uma jovem se situa em sua robusta e dilacerante causa.

Produzido por Sam Raimi (Um plano simples), o longa-metragem possui baixo orçamento sendo assim uma produção B eficaz de consumo imediato e fácil. Não há em Predadores assassinos a intenção presunçosa de ser mais do que realmente seus fotogramas revelam e de prometer mais daquilo que seria capaz de entregar.

Simples no formato e conteúdo, o filme se revela agradável surpresa do gênero suspense psicológico e terror de contornos explícitos que deriva em percalços traduzidos em lacerações e perdas anatômicas tal a gravidade do contexto.

Haley Keller/Kaya Scodelario sai em busca do pai, Dave Keller/Barry Pepper (O mensageiro), que não retorna ligações durante a passagem de um furacão em uma cidade da costeira Flórida (algo comum na região) e se depara com inimigos letais e carnívoros representados por um bando de crocodilos em época de procriação e desova.

Mesmo com o aviso da irmã e dos guardas de prevenção de catástrofes para se afastar da região, a personagem segue em frente por devoção ao depressivo e divorciado Dave Keller. Encontra na casa preservada de modo sentimental pelo mesmo antagonistas mais severos e mais perigosos que a tempestade em si mesma à medida que esta ganha força.

Dave Keller ferido pelo ataque dos répteis e quase desistindo da vida se sustenta no suporte emocional de Haley Keller em exponencial e notória nuance psicológica onde o sentimento de afeição verdadeira da moça e sua pujante personalidade refletem no fortalecimento da psique do pai que passa a colaborar na arriscada empreitada que envolve o duo.

Com a inundação da casa eminente e paulatina em função do temporal e os imensos animais letais por natureza mais habilidosos neste ambiente aquático, a expressiva protagonista precisa usar sua habilidade incomum de nadadora competitiva desde a infância, seu fôlego treinado e o incalculável e apreciável instinto resiliente para vislumbrar alguma chance de sobrevivência para ambos.

Com o inimigo raspando por seu corpo e em alguns momentos abocanhando parte deste, Haley Keller usa alguns apetrechos como os sinalizadores para em desvantagem se desvencilhar de seus algozes como último recurso de salvação em meio à crescente tormenta.

O produtor Sam Raimi começou sua carreira dirigindo longas-metragens de baixo orçamento e com poucos atores em cena como o icônico Uma noite alucinante, de 1981 e sabe fazer uso de pequenos espaços em obras claustrofóbicas como este filme de Alexandre Aja.

A psique lutadora e reativa de Haley Keller aliada ao frescor de sua juventude em um coquetel com sua personalidade recheada de pensamentos e respostas proativas e rápidas evidenciam a tábua de salvação da dupla.

Puro cinema escapista e pipoca, a obra se destaca pelo tom de intenso realismo de suas tomadas e alguma verossimilhança exposta nas cicatrizes e mutilações de seu par principal e o fatalismo de seus coadjuvantes que realçam seu apelo ao plausível dilema de provação divina de seus intérpretes.

Seu fotograma final congelado evidencia um estilo fílmico e uma opção do diretor que abriu mão de um enquadramento de sua câmera ampliando o ângulo de visão de seus elementos ou sequenciando o desfecho da ação.

Sua trilha sonora algo tétrica e acertada (mesmo ausente em situações significativas) realça algumas cenas nefrálgicas da obra e serve de pano de fundo para sua idiossincrasia de gritante desespero fílmico em harmonia com a atmosfera cinzenta que o sintomático mau humor da natureza expresso no furacão devastador acentua.

Os econômicos diálogos do longa-metragem esboçam algum humor antes da situação sair de controle em meio ao clima de crescente tensão que Predadores assassinos explicita em sua idiossincrasia cênica de angustiante interesse pela performance de sua empática protagonista que veste roupas de surfista e bodyboarder como jaqueta, calça Capri e uma fita em um dos tornozelos.

A situação deixa severas cicatrizes físicas nos personagens e sobretudo em suas psiques, nos recônditos de suas personalidades tal a intensidade de estresse que o mote do longa-metragem, por falta de fotogramas, se recusa a reverberar.

O silêncio onipresente na obra se assemelha ao excelente Um lugar silencioso, de 2018 com o casal 'Klunt', Emily Blunt e John Krasinski, no qual o som é traiçoeiro de suas personagens.

Em Predadores assassinos o som aparece como elemento fílmico de distração dos animais selvagens mas sua ausência se torna por vezes fundamental.

Movimentado, perspicaz, incessante Predadores assassinos é um tratado sobre a capacidade instintiva de superação de sua protagonista em condições visivelmente adversas e desfavoráveis que sintetiza o dilema dicotômico humanístico entre o impensável fraquejo e a honrosa bravura.

O longa-metragem exprime o acaso de uma moça valente e corajosa em confronto com o inusitado e narra a epopeia de uma psique combativa e destemida que não possui tempo para desperdiçar com o sabor amargo de sua evidente fragilidade física em relação ao seus antagonistas.

Márcio Malheiros França

domingo, 11 de agosto de 2019

Crítica: O professor substituto

Psiques precocemente amargas e cáusticas




O professor substituto (França, 2018), roteirizado e dirigido por Sébastien Marnier (Irrepreensível), versa sobre a união e arrogância de meia-dúzia de alunos superdotados em seus intelectos de uma classe de elite de uma renomada escola primária em uma cidade da França e seu estranho e bizarro modus vivendi e concepção sombria de evidente negação de suas existências refletidos em gritante falta de empatia e carisma entre os seus.

Azedos como a bílis produzida pela vesícula e exalando antagonismo que gera antagonismo, os coprotagonistas juvenis liderados por Apolinne/Luàna Bajrami (Feliz aniversário) e Dimitri/Victor Bonnel (estreante nas telonas) possuem um assustador e tétrico gosto por catástrofes naturais ou criminosas e um repugnante e lúgubre vislumbramento pela necrofilia e tortura humana e animal.

Fechados em um casulo como uma seita macabra e ideologizados politicamente com evidente visão prosaica da humanidade refletida na maneira incomum de conduzir sua rotina, o grupo apresenta interesse nefasto pelo inusitado e o escatológico e se esforça além do suportável física e emocionalmente para alcançar um estado psicológico de gritante impassividade com notória ausência dos sentimentos de medo e dor.

O professor substituto possui uma inclinação para o desconhecido em sua narrativa melancólica que explora imagens que revelam o apego ao trágico de seus elementos impúberes que afetam as suas respectivas psiques, o cotidiano estudantil e seus próprios professores.

Assim como a onda sufocante de crescente calor, o longa-metragem apresenta sucessivas e angustiantes situações com inclinações degradantes de seus protagonistas principais e coadjuvantes que apresentam algo incomum de latente inclinação para o lado obscuro e anormal em suas personalidades exóticas.

O longa-metragem de tonalidades intensamente dramáticas possui idiossincrasia experimental que exprime sua fuga da mesmice e dos padrões cênicos usuais com sua verve sombria de desencanto e desesperança de vários de seus intérpretes que apresentam tendências negativas de autodestruição e alguma imolação em seus psicológicos precocemente espatifados.

Pierre Hoffman/Laurent Laffitte (Elle) o professor que substitui o titular que optou pela tentativa de suicídio precisa sair de sua zona de conforto de sua profissão para ser o ponto de equilíbrio e um luminoso farol de sensatez em um ambiente nocivo e desesperador de protagonistas desregrados e descontrolados.

Há cenas em O professor substituto de puro suspense como as luzes que apagam na residência do protagonista e a aparição fantasmagórica dos líderes do grupo, Apolline e Dimitri, durante à noite, na penumbra do monitor, quando o personagem começa a substituir a razão psicológica pela disfunção em sua personalidade

Comportamento explicitado na sua obsessão pelas cenas fortes e impactantes contidas nos Dvd's dos estudantes que assiste à exaustão e no comportamento algo agressivo no âmbito escolar oposto à sua verdadeira essência.

As misteriosas ligações telefônicas que prefere atender com sons estranhos e o clima excessivamente quente em noites insones minam paulatinamente seu equilíbrio emocional e acentuam seu estado de espírito desequilibrado em função do estranho comportamento de seus alunos.

Assemelhada com A família Adams, a trupe juvenil e seu modo hermético de convivência, como em uma sociedade secreta, de encarar o mundo representa o negativismo em estado bruto das mazelas que o homem provoca na natureza e na falta de harmonia do planeta.

Essa força destrutiva de si próprios faz um paralelo com o possível e verossímil apocalipse provocado pela ganância famigerada por dinheiro e poder e encontra ressonância em diálogos ácidos e na composição de uma música algo tétrica, ainda que dançante, da turma e sua professora da disciplina.

Essa visão pessimista e de extremada ausência de perspectivas que Sébastien Manier joga na telona representa o colapso civilizatório que se traduz em latente e exponencial amargura de seus fotogramas e uma possível hecatombe da natureza tal como se conhece por fatores diversos que convergem para a mesma finalidade ruidosa e depreciativa.

O longa-metragem de origem francesa e do século XXI é o espelho de algumas obras fonográficas de sucesso do Rock tupiniquim oitentista. Tanto musicalmente explicitadas em suas icônicas letras como seus respectivos clipes de divulgação já expunham essa tendência com suas verves contestatórias e algo premonitórias nas faixas: Soldados, da banda brasiliense Legião Urbana, de 1985; Só o fim, da formação baiana Camisa de Vênus, de 1986 e Carta aos missionários, do conjunto carioca Uns e Outros, de 1989.

Provocador, intrigante, contestador O professor substituto aborda o declínio e a degradação da sociedade moderna e apresenta um líder do cenário mundial como uma peça-chave desta engrenagem.

Em completa redoma antissocial, os descontrolados e intrinsecamente rebeldes alunos da classe especial (há uma divisão na própria sala de aula) são um produto atípico e pavoroso da sociedade atual.

Ainda que seu membro mais frágil e visado recue do ato de completa insanidade no desfecho e navegando na contramão dos jovens da atualidade ao não fazerem uso da internet e sem supervisão dos seus progenitores e dos membros da escola, Apolinne e os demais transmitem cáustica arrogância em outrem que evidencia a fuga da obviedade e do comum no texto e na direção de Sébastien Manier.

Pierre de Laurent Laffitte é o elemento que vislumbra o desenrolar do processo de desequilíbrio mental e psicológico de seus alunos e demais integrantes do corpo docente e acadêmico da instituição. Sua psique sofre abalo com a perspectiva de implosão dos adolescentes com seus jogos de resistência e a plausível possibilidade de provocarem o caos com suas personalidades distorcidas e rochosas.

O personagem de Laurent Laffitte de tendência homossexual com atração por um colega de magistério e ex-amante de seu vizinho Steve/Gringe (Inocência roubada) surge como a peça que pretende repor a normalidade do mecanismo difuso no perverso sistema imposto pelos alunos.

Ainda que perca momentaneamente o seu próprio norte e flerte com o sentimento desprezível de prazer de chinelar baratas e notório desleixamento com a salubridade de sua residência, Pierre é a síntese e a antítese dos demais.

Pierre surge como salvador em situações de total catástrofe e, em dado momento, diante do inevitável e sem ter como resolver demonstra resignação com aparente cumplicidade, ao menos no conhecimento, no ato final de desmonte do sistema vigente perpetrado pelas mentes brilhantes entupidas de empáfia.

Sébastien Manier utiliza o recurso da pouca luminosidade para realçar o clima claustrofóbico de sua obra inclusive no clímax no castelo, logo após a cerimônia de formatura dos formandos, onde Pierre apenas com a lanterna de seu celular busca vestígios das crianças.

O professor substituto possui uma singularidade exemplar que inebriaga as emoções do espectador em sua narrativa ambígua e crua e sua ausência de linearidade fílmica evoca um interesse crescente pela cena seguinte, por algo que expresse o inabitual.

Imprevisível, subversivo, instigante O professor substituto aborda de forma incrivelmente original e crível coprotagonistas incomuns que revelam a sordidez da natureza humana quando há falta de controle sem resvalar no maniqueísmo habitual. Suas ações são movidas por angustiadas psiques e representam causa e efeito do ambiente opressor que os rodeia.

O professor substituto é um tratado sobre o apocalipse da Terra ocasionado por agentes tóxicos em sua estrutura antes harmoniosa em função da insensatez humana traduzida em valores e ganhos materiais e do colapso da racionalidade de seus elementos.

Um retrato sombrio da humanidade com intenso potencial de destruição ao seu redor que reflete em tentativa de suicídio coletivo como válvula de escape e perigosa animosidade entre os seus semelhantes.

O professor substituto é um oásis referencial de aberrações ímpares mesmo para o cinema francês ao narrar o cotidiano sombrio de personagens tanto exóticos quanto intrigantes e prolíficos em sentimentos e ações mórbidas. Alarmista e essencial, o filme resvala na distopia sem de fato nela se inserir.

Márcio Malheiros França

terça-feira, 16 de julho de 2019

Crítica: Mulher solteira procura

Morando com o perigo




Mulher solteira procura (EUA, 1992), dirigido por Barbet Schroeder (O reverso da fortuna), trabalha com o ônus da necessidade financeira em custear as despesas de um apartamento que promove o encontro de suas jovens protagonistas principais Allison 'Allie' Jones/Bridget Fonda (Dr. Hollywood - Uma receita de amor), a locatária, com Hedra 'Hedy' Carlson/Jennifer Jason Leigh (Cortina de fogo), a sublocatária.

Barbet Schroeder se vale de um texto escrito à seis mãos para tecer uma narrativa que paulatinamente vai expondo a verve psicótica de Hedy em uma embalagem de crescente atmosfera sombria, sufocante claustrofobia e suspense psicológico. A produção é um eficaz exercício de terror implícito para no terço final escancarar sua verdadeira vocação de terror explícito e violência em estado bruto provocada pela sua personagem-psiquiátrica.

A premissa de Mulher solteira procura evidencia o carisma e a personalidade forte de Hedy em contraponto à fragilidade emocional presente na psique de Allie exponenciadas na procura do vizinho amigo e homossexual Graham Knox/Peter Friedman para passar a noite depois da desilusão com seu romance e no sentimento de culpa depois de sofrer assédio no ambiente de trabalho.

A personagem de Jennifer Jason Leigh encontra facilidade em conquistar a simpatia de sua interlocutora, desde o início, devido ao momento de vulnerabilidade desta às voltas com a indecisão de seu relacionamento amoroso e outros fatores, inclusive a sorte, que ajudam a fomentar a aliança supostamente inocente das duas.

Assim como as aparências enganam e ultrajam quando a verdade salta aos olhos, havia em Hedy uma metodologia sorrateira em suas ações e um maquiavélico modus operandi em suas intenções. A personagem de Jennifer Jason Leigh vislumbra em Allie a senhoria perfeita para por em prática seu projeto psicótico de encantamento e sedução devidamente planejado e orquestrado de forma discreta.

Reincidente em seu passado obscuro e irmã gêmea de outrem, a personagem é dominada pelo transtorno obsessivo-compulsivo e pela esquizofrenia em sua psique espatifada e deformada e procura uma companhia feminina perfeita para a argamassa de um ideal de união que tinha com sua parenta jamais esquecida em sua personalidade distorcida.

Arrojada em seu comportamento camuflado, Hedy muda a aparência física e compra roupas iguais para assumir a identidade de Allie com o intuito inicial de reviver seu conflito identitário em seu passado mal resolvido. Acontece que a empreitada foge de seu controle e a vilã aproveita seu anonimato (e seu nome adulterado) para deixar pistas falsas que apontariam a mocinha como provável culpada de seus nebulosos devaneios psicóticos.

Mulher solteira procura exibe cenas de nudez das protagonistas e insinuações carnais da sensual Hedy tanto para com Allie como para com seu noivo Sam Rawson/Steven Weber (Hamburger Hill)  que explicitam a insatisfação sexual e o vazio existencial da personagem. Momentos que afirmam a busca da mesma em criar elos e vínculos com seus interlocutores difíceis de serem desfeitos.

Fotogramas libidinosos que no seu ápice mostram masturbação feminina e realçam a tendência da época depois do estrondoso sucesso do subestimado 9 e 1/2 semanas de amor, de 1986, de Adrian Lyne e de várias outras produções que usaram o artifício como o interessante Orquídea selvagem, de 1989, de Zalman King.

Allie ocupada em suas funções como estilista e com seu psicológico abalado com o término de seu noivado e como sua posterior antagonista carente de afeto não vislumbra os sentimentos rasteiros e manipuladores desta em tempo hábil de evitar as ações desenfreadas e insanas de Hedy.

Mesmo alcançando êxito em suas pretensões cênicas ao realçar a tensão e algum mistério em sua narrativa, com decupagem ágil e boa direção de Barbet Schroeder o longa-metragem exprime a ausência do fator surpresa. A obra possui muitos elementos fílmicos que se atropelam e alguma inverossimilhança em seu desfecho. Ainda assim, Mulher solteira procura é satisfatório tratado sobre a solidão.

A arquitetura do prédio-locação da maioria de suas cenas surge como elemento que destaca a atmosfera cinzenta da narrativa. Situado em Nova York, o decadente e imenso local exala aspectos de periculosidade como o elevador defeituoso, além de garagem e lavanderia desertas. Localização ideal para Hedy executar seu plano doentio sem despertar suspeitas.

O longa-metragem mesmo para o ano de produção (1992) não chega a ser completamente original por ser herdeiro do mote e da concepção fílmica do memorável Morando com o perigo, de 1990 com o escroque inquilino interpretado por Michael Keaton aterrorizando seus senhorios Melanie Griffith e Matthew Modine.

O gênero suspense psicológico estava em alta na época com o lançamento do decepcionante Dormindo com o inimigo, também de 1991 com a oprimida Julia Roberts e seu agressivo e maníaco-compulsivo marido interpretado por Patrick Bergin, como também do desconcertante Instinto selvagem, de 1992 com Sharon Stone.

Mulher solteira procura narra a psicopatia de uma personagem de psique pérfida, intrusiva e possessiva na afeição e no cotidiano de outrem devidamente escolhida no seu imaginário torpe. Intuitiva e perspicaz, a personagem consegue por algum momento seu objetivo e guiada pelo ciúme doentio e carência afetiva extremados procura eliminar aqueles que tenderiam a atrapalhar seu projeto torto de convivência humana.

Mulher solteira procura é um painel amargo sobre o colapso relacional do homo sapiens em acreditar em intenções e razões do outro. Um retrato plausível de alguém que vislumbra não haver outra saída para preservar sua existência a não ser se fortalecer psicologicamente e usar das mesmas táticas persuasivas e da mesma letalidade de sua antagonista.

Márcio Malheiros França

terça-feira, 9 de julho de 2019

Crítica: A estranha perfeita

Personalidades pérfidas e amorais





A estranha perfeita (EUA, 2007), dirigido por James Foley (Quem é essa garota?), trabalha com dissimulações e engenharia mental de um personagem em criar condições para executar, forjar seu álibi e encontrar o bode expiatório ideal para um assassinato cujo plano teórico concebido e seu mecanismo prático beiram o sublime.

O mistério sobre a identidade do(a) criminoso(a) vai sendo costurado de forma exemplar por James Foley que coloca a jornalista investigativa Rowena Price/Halle Berry (Coisas que perdemos pelo caminho) a protagonista principal e seu principal coadjuvante, Miles Haley/Giovanni Ribisi (Cold Mountain), em claro procedimento investigatório cujo alvo é o empresário Harrison Hill/Bruce Willis (Duro de matar).

A estranha perfeita evidencia seu carisma em criar uma atmosfera que retrata um interesse crescente por seu desfecho, pela identidade do culpado. Apoiado em ótimo roteiro de Todd Komarnick (Sully - O herói do rio Hudson) o diretor realizou uma pequena obra-prima sobre a falta de escrúpulos e a perversidade humana em estado bruto quando o sentimento de vingança e a consequente necessidade de salvar a própria pele das garras da lei se consolidam em suas personalidades maquiavélicas.

Com inspiração nos clássicos suspenses de outrora e no cinema noir, A estranha perfeita é uma máquina de personalidades psicológicas típicas de um sistema perverso de sentimentos no qual ninguém é pobre pecador expiando seus pecados. O sentimento indigesto e impiedoso da traição fica notório em cada gesto e ação de seus protagonistas e coadjuvantes. Universo de lei da selva em que mesmo amizades aparentemente sólidas e com a mesma ideologia são desfeitas em prol da sobrevivência.

Arrojado, intrigante, sólido A estranha perfeita aborda de forma original a engrenagem do mistério que envolve um crime sem resvalar no maniqueísmo habitual e escancara a singularidade de protagonistas que possuem algo a esconder e sempre com algo a perder que bate na tela revelando a essência sórdida de seus integrantes e suas plausíveis subsequentes motivações para as insanidades perigosas que se chocam com os interesses de outrem parecido em sua psique inescrupulosa e deformada.

James Foley filma ângulos e enquadramentos ímpares - evidenciado em seu prefácio e clímax - e alcança êxito ao lidar com as idiossincrasias da trama recheada de personagens tanto inteligentes quanto pérfidos e sem remorsos em suas ações. O mote de A estranha perfeita coloca os atores em confronto psicológico e por vezes físico no qual o calcanhar de Aquiles de um é investigado e pisoteado por outro.

Desde o pervertido sexual passando pelo assediador de mulheres compulsivo até a ninfomaníaca cujo assassinato move a trama revelam as profundezas lamacentas das psiques de seus personagens centrais A estranha perfeita vai sendo costurado de forma inequívoca e com intenso domínio fílmico em sua narrativa definida e oferece ao espectador uma brilhante interpretação de Halle Berry sua protagonista principal.

James Foley possui boa condução de seus atores e filma as reviravoltas da trama com maestria, de forma linear e sem atropelos e exibe sua técnica com trechos de frases-chave no clímax. Ainda que o desfecho explicite alguma celeridade no formato sua solução final é verossímil e satisfatória.

Como um emocionante e clássico jogo de tabuleiro, o longa-metragem narra uma intrincada trama de suspense psicológico e dedução recheada de pistas falsas subversivas e vislumbra o crime perfeito para ajustar as peças de sua engrenagem no desfecho.

A estranha perfeita usa fragmentos de flashbacks como recurso fílmico para adensar sua verve detetivesca e no desenlace como demonstração da motivação do ato criminoso e mostra o ônus da subestimação da capacidade de dedução instintiva e intuitiva do seu interlocutor.

Estiloso, imprevisível, atraente A estranha perfeita aborda manipulações rasteiras em psiques distorcidas na infância e gritante indução ao erro judiciário de seu elo mais frágil e visado. Um painel realista e amargo sobre a amoralidade e a falta de ética presentes no psicológico de seus elementos.

A estranha perfeita funciona como síntese do colapso do ideal civilizatório do homo sapiens e provoca o embate de artimanhas entre semelhantes.

Márcio Malheiros França

terça-feira, 2 de julho de 2019

Crítica: Casal improvável

Acasos do Cupido





Casal improvável (EUA, 2019), dirigido por Jonathan Levine (Os caça-noivas), trabalha com as antagônicas diferenças de cunho social, comportamental e física que tenderiam a distanciar os protagonistas principais Freddy Flarsky/Seth Rogen (Minha mãe é uma viagem) e Charlotte Field/Charlize Theron (Atômica). Em efeito reverso, a obra tece e solidifica sua aproximação e consolidação.

Comédia de costumes, Casal improvável possui o estilo típico de algumas produções estreladas por Seth Rogen com elementos como o humor tosco mas inteligente em seus diálogos primorosos e por vezes ferinos que revelam certa verborragia, alguma escatologia e duração esticada. Bem-alinhavado em suas idiossincrasias fílmicas, o longa-metragem evidencia e se beneficia de sua real vocação de ser um besteirol costurado com tutano.

Seth Rogen estrelou o filme que inaugurou o filão, Ligeiramente grávidos, de 2007, e se vislumbra em Casal improvável a mesma verve narrativa e a naturalização e afirmação de um subgênero o da comédia romântica desglamourizada, que aborda situações corriqueiras com seus personagens com conflitos reais em situações facilmente identificáveis no dia a dia dos espectadores. Não há aqui a tentativa de desconectar do cotidiano tanto personagens como suas respectivas emoções e psiques.

As cenas de sexo implícito entre Freddy Flarsky e Charlotte Field reafirmam a intenção de Jonathan Levine e de seus dois principais intérpretes e produtores do processo fílmico de tornar seus personagens factíveis com a humanidade e seus dilemas morais, éticos, sexuais. Recurso cênico arrojado e explicitado, por exemplo, nas fantasias eróticas da coprotagonista que embaralham o raciocínio lógico de seu parceiro.

O longa-metragem procura a desconstrução de um imaginário popular onde mesmo uma mulher de status profissional elevado - Charlotte Field é secretária de estado do governo norte-americano - sente e fantasia os mesmos desejos libidinosos que uma cidadã comum.

Em momento antológico onde depois de sofrer um atentado, Charlotte Field busca, na companhia de Freddy Flarsky, a fuga de sua rotina e de seu psicológico rígido e compromissado com a carreira em uma noitada na boate e depois estendida para seu quarto regada à álcool e entorpecentes. Prudentemente disfarçados, assim como seus seguranças.

Como em toda situação onde a inexperiência e o ineditismo do fato prevalece, a situação transborda para o inevitável e excessivo uso de seus elementos dispersivos da racionalidade e respinga no senso de responsabilidade da personagem quando esta precisa negociar, como osso do ofício, com um sequestrador estrangeiro ainda inebriada. Cena-sequência hilariante e impagável que funciona como síntese da obra.

Cômico e romântico na medida certa, Casal improvável aborda, em dado momento, o distanciamento por motivos profissionais da dupla que gera sofrimento e angústia em ambos e evidencia o que estava invisível para a protagonista e seu par: a saudade da companhia do outro que desperta em ambos a pulsão de vida e o amor que a ausência provoca e acentua.

Criativo, ímpar, diferenciado Casal improvável se beneficia de certa originalidade e interesse crescente e trabalha com o sonho e ideologia que advém da infância no planejamento almejado da trajetória de Charlotte Field e que mesmo sob pressão de chantagens e demais adversidades resiste devido e sobretudo à presença de seu par romântico.

A personagem de Seth Rogen abala a estrutura psicológica de Charlotte Field com tamanha intensidade com sua personalidade oposta mas semelhante na índole que exprime e reflete o conceito dos dois pólos dicotômicos que se completam e se fortalecem.

Seth Rogen e Charlize Theron atuam de forma espontânea e souberam captar o ritmo do longa-metragem e o peso de seus respectivos papéis. Freddy Flarsky rude, bronco, sincero se adaptou bem ao refinamento, polidez, idealismo de sua interlocutora e vice-versa.

O casal apaixonado encontra em sua união a razão de sua existência. O acaso do Cupido contraria todos prognósticos contrários ao seu enlace e toda improbabilidade da empreitada não ser exitosa.

Márcio Malheiros França

domingo, 3 de março de 2019

Crítica: Crimes obscuros

Erro de cálculo


Crimes obscuros (EUA e Polônia, 2016), dirigido por Alexandro Avranas (Miss Violence), trabalha com os bastidores de uma investigação policial de um crime brutal, com uma artimanha que envolve um escritor famoso, papel de Marton Csokas (Noé) e sua namorada Charlotte Gainsbourg (Ninfomaníaca), cada qual com sua motivação pessoal.

Baseado em fatos reais e ambientado na cidade polonesa de Kraków, cinzenta e chuvosa, o longa-metragem se sustenta na narrativa sombria (realçada pela fotografia em tom neutro) e definida que o diretor impõe à obra. O roteiro de Jeremy Block revela-se atraente à medida que o projeção vai se desenrolando em uma obra policial noir paulatina, verossímil, potente.

A obsessão e obstinação de Tadek/Carrey conduz Crimes obscuros a se tornar um filme cult instantâneo por caminho quase que completamente original e conta com uma reviravolta em seu desfecho surpreendente e eficaz, filmada de forma hábil pela câmera de Avranas.

A excelente atuação de seu ator principal (Carrey) e a correta interpretação de sua coadjuvante (Gainsbourg) são um fator de força na apreciabilidade do filme.

Com atuação esmerada, Jim Carrey brilha como um investigador taciturno e introspectivo em sua psique que reverbera uma conduta moral e ética acima da média entre os seus - fator que evidencia seu erro no desfecho impensado de seu personagem -.

Charlotte Gainsbourg ilumina a telona com uma interpretação fechada na pele de Kasia, uma mulher viciada em drogas, lasciva, fatal e de uma enorme sensualidade, ainda que não recorra à maquiagem, tendo, portanto, um atributo recheado de volúpia libidinosa natural.

O ato sexual entre Tadek e Kasia possui uma nuance fílmica relevante para o desenrolar da trama. O desejo carnal que o personagem de Carrey sente por uma potencial suspeita no caso evidencia sua maior fragilidade.

O clube sadomasoquista que origina o mote da trama e os filmetes de cenas do local recentemente fechado que Tadek analisa, além do áudio-livro de Koslow/Csokas que o personagem principal escuta à exaustão, se assemelha à premissa de 8 milímetros, de 1999, com resultado um pouco mais denso que seu similar dos anos 90.

Há em Crimes obscuros muitos closes em Carrey que procura resolver o caso criminal, enquanto cuida da mãe e relega sua esposa ao segundo plano, para ser promovido após ser desqualificado de sua função em virtude de um erro em seu trabalho anterior. 

Tadek será usado durante as investigações por seus superiores e acabará completamente envolvido em sua solução que quase entrará em paranoia profissional.

Gélido, envolvente, nebuloso Crimes obscuros narra a epopeia de um homem focado em sua missão que se vê em um emaranhado de situações exóticas que exercitam sua psique, em detrimento de outros interesses, em busca de solucionar o mistério. 

Esta idiossincrasia prejudicará seu bom faro detetivesco ao ser guiado por pistas falsas, e, ainda, por cair em uma armadilha camuflada de feminilidade.

Tadek se anula por cair em luxúria ao sentir atração física pela pessoa errada e em momento inadequado e por seu inabalável senso de justiça. Um personagem demasiadamente intrigante. 

Como um paladino da verdade, Tadek peca ao ir longe demais sem calcular e aprofundar na análise dos sentimentos ocultos de seus antagonistas. Exemplar ode sobre a traição. 

Crimes obscuros é uma pequena obra-prima sobre o peso da idade de um homem que afeta a todos ao seu redor, e, inclusive, a si mesmo.

Márcio Malheiros França

terça-feira, 19 de março de 2013

Crítica: Ondine

A esperança que cresce com o amor




Ondine (EUA e Irlanda, 2009) trabalha com o surreal mote da possível existência de seres aquáticos, com características femininas. O roteiro (escrito pelo próprio diretor, Neil Jordan) do longa-metragem faz uma fusão entre realidade e fantasia, entre o concreto e o imaginário que bate na tela de forma original e marcante. O experiente cineasta explora de forma inequívoca a sensação de conto de fadas que é percebida na maioria de seus fotogramas.

Neil Jordan (também produtor da película) utiliza o talento de contornos dramáticos do bom ator Colin Farrell, da sensualidade de Alicja Bachleda-Curus, no papel que dá título ao filme e de seu alter ego de vários filmes, Stephen Rea, em participação secundária, na pele de um padre de um vilarejo do interior irlandês, para conceber uma metáfora sobre o caminho insinuante que move o coração.

A tradução de Ondine é: Moça que veio da água. A credulidade que gira em torno da lenda conduz a narrativa agradável do filme, realçando o conflito entre a crença e o ceticismo, presente no psicológico de seu elenco.

Lacrimogêneo, romântico, delicado, tocante Ondine de Jordan emociona por meio da bela paixão que une as personagens Farrell e Alicja, e seu mérito maior é conseguir camuflar um pano de fundo comum e corriqueiro com uma trama comovente sobre um amor inocente, carregado de significados de esperança e recomeço.
 
Márcio Malheiros França